Joaquim Castro Caldas
Somos feitos de referências, agimos auxiliados por atalhos que a memória constrói. Deitamos mão da possibilidade de compactar informação, condensando num símbolo a mundividência vasta de algo muito mais complexo, talvez até indefinível. Vivemos tão ajudados quanto limitados pelo imediato reconhecimento de um signo, de uma forma. A facilidade de entendimento do mundo é também uma sua diminuição. Padronizamos referências, generalizamos conceitos para que, em traços largos, acedamos a um sentido. A problematização dos contextos, perigando a linear relação que tendemos a estabelecer com a maioria das coisas, é a crise perfeita de que a arte se serve. A arte é, invariavelmente, uma obrigação de reclassificar. Acabado o território de segurança, acedemos à crítica dos modos comunicantes, necessariamente condutor a outros modos comunicantes que, a seguir, se criticarão também. Estamos sempre a lidar com a urgência de um novo mundo que, na descoberta, se torna, por definição, algo velho.
A obra de Vítor Espalda vive da deslocação, esse ansioso gesto que procura incutir no outro a necessidade de repensar aquilo sobre o que já se generalizou a informação, aquilo que já existe como conceito suficientemente acabado no nosso universo. Reencontramos, assim, algumas das grandes referências da civilização contemporânea usadas na crise da arte: vontade de terminar com interpretações imediatas, preconcebidas, para anunciar outra verdade e, por isso, sugerir outro comportamento. A arte de Vítor Espalda assume o ativismo. Toda a arte é ativismo. O que aqui se sublinha é a utopia de mudança. Dizer arte para dizer outro homem, outra humanidade, como quem procura saída de uma imperfeição e entrada para alguma melhoria. A crítica, mesmo aquela que resulta de má fé, é sempre o exercício de um moralista, aquele que repudia o que se dá por estabelecido e espera por uma ordem distinta. Neste sentido, fazer arte é eminentemente um compromisso ético. O artista coloca-se num combate. Ele está armado com a sua frontalidade, não exactamente para vencer, mas para contestar. O que Vítor Espalda faz é desta ordem. Contesta. Se não somos chamados ao protesto com maior rapidez é porque a forma como se faz entender usa um processo inusitado, quase humorístico, que a surpresa acaba por dotar de comicidade. O gigantismo dos símbolos que quer ver repensados, a relação das suas telas com a tipologia dos cartazes ou da publicidade, sugere uma ironização dos assuntos sem a dimensão trágica. Estamos ainda na esteira da Pop. O cromatismo, o jeito apelativo, aquele gigantismo, remetem para o frívolo do reclame, mais do que para o agreste das trincheiras. De todo o modo, há trincheiras neste alarido. Entre o sabão, o comprimido e o brinquedo, metem-se os grandes museus e as grandes obras e tudo quanto se perde numa espécie de arte morta contra a velocidade da vida. A sociedade contemporânea habita o museu com a mesma ligeireza com que percorre o shopping. Os lugares, como símbolos, valem por uma fotografia de telemóvel. A arte periga na sua relação com os homens por falta de tempo para, de facto, encararmos ainda as referências basilares e assacarmos delas implicações válidas para a vida de hoje.
O trabalho de Vítor Espalda é um ruído. Ele impede que a arte se silencie e obriga a que cada um de nós tenha opinião ou, ao menos, pondere numa opinião. A isso, de outro modo, chama-se futuro. Quem não pondera sobre assunto algum, passa fugaz. Não tem senão passado e uma nesga miserável do presente.
Valter Hugo Mãe – 2014
Inventor de identidades infinitas, na solidão do seu estúdio, o narrador de imagens vive ciente do poder cosmogónico da arte e da imaginação. Mesmo que, por vezes, essa consciência pareça surgir apenas como recordação de passado distante, vislumbre de futuro incógnito ou névoa de alucinação. Dispersa no traço, na sombra e na cor, emerge a relação simbiótica entre o real e o imaginário, entre a tela e o mundo, entre o sujeito e o quadro.
A expansão do cosmos imaginário não logra confinar-se ao espaço da tela e inicia a viagem de regresso ao local obscuro onde teve origem, algures na mente do narrador de imagens. Mas o espaço branco da tela seria um buraco negro de onde nenhuma energia irradia, se o artista não criasse estratégias que garantem a fluência e a verosimilhança das narrativas dos domínios do caos: “For our words no longer correspond to the world. When things were whole, we felt confident that our words could express them. But little by little these things have broken apart, shattered, collapsed into chaos”, escreve Paul Auster, na mais enigmática das viagens urbanas, The New York Trilogy.
A escrita de Paul Auster e a obra de Vítor Espalda parecem conter em si o plano de uma escrita críptica, também ela caótica. Tudo é construído para dar a ilusão de uma resolução futura que se dispersa sempre, desdobrada por espaços simultâneos no cenário urbano.
Para o autómato urbano atingido pela descoberta de que o universo é passível de estar condenado à dissolução, a questão essencial é a de saber como reagir. Só quando a imaginação opõe ao caos novas ideias e novos cosmos é que o determinismo do mundo quotidiano pode ser alterado. Neste quadros, nada impede a fragmentação da realidade, mas graças à riqueza da imaginação novos mundos nascem. No ensaio The Art of Hunger, Paul Auster dizia reconhecer-se numa citação de Samuel Beckett: “What I am saying does not mean that there will henceforth be no form in art. It only means that there will be a new form, and that this form will be of such a type that it admits the chaos and does not try to say that the chaos is really something else… To find a form that accommodates the mess, that is the task of the artist now”.
Para cumprir este objectivo, é necessário mergulhar no âmago da solidão individual e ordenar os acasos e os objectos incoerentes, ressalvando aquilo que faz sentido e mantem a ligação ao mundo envolvente. Subsiste sempre a possibilidade do confinamento absoluto, da recusa em olhar o mundo exterior mas, ao optar por essa atitude, o artista-criador estaria a sufocar aquilo que de mais vivo persiste em si. Se o poder criativo assim se entregasse, a obra nunca codificaria a ordem do novo cosmos imaginário, que estabelece a conexão entre o quadro e o mundo.
Nesse espaço intermédio, o ritmo abranda, opõe-se à agitação uniforme da hostil massa urbana. A deambulação pelo labirinto nebuloso concebido pelo narrador de imagens termina apenas nos limites da tela e da técnica que, a partir do caos imaginário, enquadram um cosmos legível, da vertigem ao momento, from fast to slow.
Clara Sarmento – Setembro de 2006
The interpretation of time presents itself as an unchangeable thing, something that is impregnated with violent and excessive kinetic energy. It is time freed from formal references and values – 24 hours no longer are 24 hours, we no longer feel them as such. Our modus viventis doesn’t allow us their appropriation. It’s all about time where painting is cinema and cinema is only light and drama is translated by the gesture of who performs it because there’s no longer space for words. Only the image prevails, and if it happens to be light that surely is good.
It is the time of permanent transition, of the baconian metamorphosis which shows the mutant and carnal scum that represents the substance of human condition, the same one that gives up governing itself and takes delight in that ostensible abstract that we call money only because it opens the door to possession. The object no longer is the objective, but only the mere possibility to access to it.
Oh time, go back forward!
The work focus on that scenic existence that people indulge in massively where there is no room for contemplation, reflection, or even to breathe.
It’s about an imaginary that calls to mind the sluggish shooting of a film where the camera moves quickly trying to pick up its motive but merely catches deformed and almost undecipherable spots showing a clear lack of ability to adapt to the swift changes of direction.
Here, the humble claim of giving material existence to that abstract concept of time as it is understood nowadays is depicted. Figures in motion like silly insects that don’t question their own destiny. With all the technology that should set us free to dispose of more time available for everybody us being hastier and hastier seems pure nonsense.
The frenzy of contemporary life transforms the human being into some kind of automaton, of zombie as Lipovetsky said, of a non thinking being that is here to accomplish a mission determined by some board of directors of some multinational company… It looks like we are predestined to be more and more isolated although in a group.
Despite my scepticism, my current works do not reflect the somewhat gloomy tone here expressed and follow their course of plastic production with some hope. After all, painting as well as poetry is feeling first of all. And this feeling can be optimistic.
Vítor Espalda – 2005
A proposta artística de Vítor Espalda define-se pela representação de figuras que se movem em círculos dentro do tempo e do espaço, absorvidas num turbilhão ritual de noite e dia, de casa e trabalho, de ir e voltar, de sair e regressar (sempre), de perder-se e encontrar-se (nem sempre). As figuras são captadas na rua, em passadeiras, estações de caminho de ferro, gares de aeroportos, espaços indiferenciados e instantaneamente captados, sem escolha ou critério, ao sabor da oportunidade que surge. Ignorantes do sentido que as retém à face da terra – exceptuando uma pesada sensação de obrigatoriedade do trabalho e uma preocupada perseguição da descendência – essas figuras vivem em trânsito permanente e sem destino à vista, são trânsito e apenas essa dimensão lhes confere existência. (Até aqui, nada disse que não se veja e observe. É preciso evoluir para a determinação de intenções).
É um projecto artístico que metaforiza a ausência de tempo e espaço através de uma poética de simulação da realidade virtual. A percepção a que nos conduzem estas imagens é, de facto, tributária da percepção a que nos obriga o ciberespaço, com todas as alterações que a especificidade organizativa deste domínio implicou. Não há reconhecimento possível nestas imagens: tudo se movimenta a grande velocidade e em magma não orientado; a matéria flúi deixando vestígios da sua passagem, sem que qualquer elemento se detenha, sem que qualquer selecção seja viável.
Voltemos à simulação do espaço virtual que é aquilo que neste projecto mais me interessa destacar pelo antinómico que envolve, pelo apontar dos equívocos e das contradições de muitos dos propósitos artísticos actuais, também eles em pesquisa aberta e em busca de… Reduzidos a um denominador comum, os programas plásticos como o de Vítor Espalda, fazem da reflexão sobre a comunicação, o motor do próprio trabalho apresentado, ainda que subsista uma carga representativa inegável. É este meio do caminho em que se instala a matéria criativa do artista, que o coloca directamente no centro das preocupações culturais da actualidade e faz do conceito e do resultado atingido, uma única premissa de trabalho, una e coerente.
A simulação atrás referida radica precisamente na apropriação mimética de aspectos inerentes à realidade cibernética, de comportamentos do internauta, da especificidade do movimento pluridireccional que nesse meio se gera. Senão vejamos: desde logo é visível a necessidade de registos do processo de comunicação importados do computador. Tal como no procedimento informático, também aqui se revela a transmissão de dados e o momento em que se opera a sua transferência, através de sinais gráficos. Vítor Espalda expõe de forma visível a passagem da informação e o movimento que lhe é próprio, pelo uso de barras de deslocação, de bandas de esbatimento, de zonas de prolongamento e deformação das formas. Tudo remete para as grelhas, as bandas móveis, as ampulhetas estilizadas que configuram o tempo da espera, o preenchimento de dados, a chegada das novidades.
Mas outros aspectos, talvez menos objectivados, apoiam esta assimilação de modelos cibernéticos. Antes de mais, observe-se a compartimentação e a fragmentação das propostas de Vítor Espalda – elas reflectem a total descontinuidade do mundo das redes de informação; depois, repare-se na trajectória que as suas figuras exprimem – ela resulta directamente do comportamento do sujeito que obsessivamente visita sítios sem neles se deter, sem com eles gerar qualquer intimidade, sem através deles criar laços identificativos por ausência efectiva de um envolvimento seguro; finalmente apercebam-se estas figuras de viajantes eternos mas sem a mística da viagem, de visitantes despojados da curiosidade da visita, de seres errantes desprovidos do fascínio e do glamour da deriva. Como se tudo tivesse sido submetido a uma prosaica existência de que estão completamente ausentes quer a consistência espacial, quer a espessura temporal e onde, ao contrário do que seria de esperar, essa ausência não significa leveza nem imponderável condição, antes amarra o sujeito a uma categoria informe. A visão desencantada que nos sugere o universo figurativo apresentado, poderia, deste modo, abrir-se à meditação sobre as ideias de liberdade ou de controlo que pairam sobre os fenómenos do acesso indiscriminado à informação e da comunicação globalizada.
Certa desilusão vinda das representações que temos perante nós instaura contradições plenas: com os vestígios da comunicação propõe-se, afinal, a reflexão sobre a não-comunicação; com as personagens activas de um mundo virtual que, em essência, não as admite, materializa-se o imaterializável, dá-se forma ao informe; o que aqui se aponta é uma espécie de fixação tradicional de um ambiente que não é fixável porque só se apercebe em movimento e só acontece enquanto movimento.
E, embora tais contradições exprimam superiormente o interesse do projecto em causa, gostaria de ver resolvidas algumas delas, ou assistir simplesmente ao seu trânsito para outro registo – o da net-art (como quer que ela se equacione) – que proporcionaria a Vítor Espalda um elemento de respiração própria e natural onde o equívoco da simulação estaria definitivamente arredado. Ou não.
Laura Castro – 2004
In a sense, my work evokes today’s human condition, under the galloping threat of the uniformization of its action and individual freedom, in a context strongly dominated by the power of money and the bankruptcy of the identities. Thus my approach focuses on the urban context, as scenic space, where the actors barely know their roles or the outcome of their representation – they move about like crazy cockroaches and take their bearings on clocks that only have the seconds’ hand. Time is swift and uncertain.
Vítor Espalda – 2003
Pierre De Ronsard
Carros, luzes, néon, táxis, esquinas, putas, teatros, cinemas, museus, bares, bêbados, beer, whisky, buzinas, derrapagens, freadas, atropelos, bing-bang, polícia, ladrão, mendigo, bêbado, puta (de novo), moda, música, shoppings, shows, megashows, travestís, jazz, blues, bares gays, bares lésbicos, artistas, grandes artistas, escritores, escritores medíocres, ruíns, péssimos, bons, muito bons! E loucos estudantes universitários xingando policiais e bandidos ao mesmo tempo. Motores, dinâmica, cultura, megalópoles. Revistas incríveis. Globalizados. Crioulização. É a dinâmica de fumos, focos, escapes, cacos, caos, tráfegos e livrarias repletas de gente sedenta de ler. E lê, silenciosamente…
Uma derrapagem, uma freada, uma batida – Pum! -, um atropelo.
“Entre a ida e a volta”… o quotidiano.
Uma derrapagem, uma freada, uma batida – Pum! -, um atropelo. “Entre a ida e a volta”… o quotidiano. O quotidiano que não é mais nosso, o hoje, o agora. O hoje que não percebemos, impensável, e o agora que não existe, diluído. Vivê-mo-los no tempo que se esvai, sem o percebermos. Junto, pedacinhos de nós: amigos, inimigos, vizinhos, colegas, primos, primas, irmãos. Parceiros da quotidiana correria, referências gastas, valores insignificantes. Ideologias desgastadas, cansaços renovados. Pensares miúdos… quase nada! Autómatos de nós, zombies errando em nossas cavernas modernas… Deambulamos sem destino, porque a nossa vida é esse ir-i-vir, esse hoje e agora, aqui. Cada um em si, só… estútipo e idiota. Cada vez mais idiota. O resto é aparência. A estampa meio desfocada de nós desintegrando-nos de nós mesmos…
Sinal VERDE! Para todos.
Nataniel Ngomane – Sampa, Abril de 2002